SARA LOUREIRO

Sara Loureiro nasceu no Montijo mas vive em Setúbal há 40 anos. É mestre em Ciências da Educação e foi docente no ensino superior, na formação inicial de professores. É diseuse, promotora de leitura, programadora e produtora cultural. Diz que a poesia é o sal da vida. Divide muito do seu tempo entre a leitura e a escrita de poesia e o ensaio literário. Por aqui se encontra.

Autora de inúmeros poemas, grande parte publicados na página do facebook  #ahapoesia

POEMAS DE SARA LOUREIRO

 

Impiedosas ondas.

Que não cedem.

Que penetram o coração do areal escaldante.

Que em grossas labaredas se acoitam por entre areias sublimadoras.

Que sobem.

Uma a uma. Duas a duas.

Três a três. Sete a sete.

A última sempre a maior. A sétima.

Que venha a sétima.

Que nos ponha em guarda.

Que se afunde.

Que não nos afunde.

Que morra aos nossos pés.

Que nos deixe permanecer.

Que nos deixe ver.

Uma… Duas… Três… Sete.

 

 

EM ESCREVENDO ME ESCREVO

Dantes

escrevia tudo a lápis

e

em folhas lisas.

E eu gostava.

Escrita viarco em almaço branco.

Depois

houve o meu tempo de transição

entre

uma escrita laranja

e

uma escrita cristal

uma escrita fina

e

uma escrita normal.

Entretanto

a escrita adolesceu

e

experimentou a substância das coisas

penetrou na essência dos prazeres

se deteve

madurou

dando pouca importância aos instrumentos

imagens

metáforas

palavras

sílabas

fonemas

encontros íntimos em teclado azert

o som das teclas a servir de contrabaixo

marcando o ritmo

sustentando o pulsar

conduzindo a harmonia.

E eu gostava.

Mais tarde

a escrita utilitária tocou a reunir

chutou tudo para o ar

desfez intenções estéticas

assenhorou-se da terra arável.

E eu não gostava.

Definhava esmaecia

abandonando acrobacias e voos libertadores.

Instrumentalização da escrita e do escritor

banalização do acto

enclausuramento da criação.

E eu não gostava.

Não sou feita para ferrolhos

sou claustrofóbica

as asas cresceram

Ícaro e Dédalo

sempre presentes coniventes

libertadores ameaçadores.

Queria

uma ilha para sobrevoar

onde

me esquecesse de morrer

onde

me perdesse a escrever

por tudo

e

por nada.

Agora

vou fazendo voos de reconhecimento

ainda

não alcancei a ilha

mas

já me perdi e me achei

diversas vezes.

E eu gosto.

 

 

Quando era gente crescida

olhava todos os dias

para cima para o céu

e para baixo para a terra

para ver se conseguia voar

e para perceber bem onde assentava os pés

e andava sempre nisto

para cima e para baixo

para cima e para baixo

até que isto me desalmou a vida

e nunca consegui voar

nem evitar valentes tropicões

e outras complicações.

Agora de volta à meninice

já não há céu nem terra

que me contenham.

Alço voo quando me apetece

se me apetece

ponho os pés sem medo onde quer que seja ou esteja.

Quero lá saber se tropico. E tropico!

Quanto a voar

mesmo se de pés em terra

sabe-me cada vez melhor.

 

 

Dançando com Piazzolla

 

Hoje quero dançar contigo um tango.

Começarás por me enlaçar a alma.

Primeira condição.

Depois as nossas mãos deverão unir-se e fundir-se

e acariciaremos nossos corpos.

Segunda condição.

O pianista que nos acompanhar colocará nas teclas

de ébano e marfim toda a força das suas entranhas.

Terceira condição.

E quando as cordas vibrarem e os sons ganharem vida uniremos nossos corpos em poesia, rodopiando.

Quarta condição.

A dança tem tudo o que a poesia tem mas

escreve-se com o corpo.

Depois entrarão o fagote e o violino.

Quinta condição.

E nós enlouquecidos continuaremos escrevendo o poema.

A orquestra irá crescendo com os instrumentos entrando à vez.

Sexta condição.

O público em êxtase baterá palmas ao som do Libertango.

Sétima condição.

O nosso poema estará prestes a terminar, exausto mas feliz.

A dança e a poesia nunca cansam a alma.

 

 

O verso despiu-se de atavios e

quando se deu nu percebeu-se

o osso a musculatura a compleição.

Estava tudo lá.

Organicamente exposto

para possuir e ser possuído.

Livre e puro como só ele

no arroubo de quem vive despido mas

analiticamente feliz.

 

 

Galgava-lhe o tronco

agarrava-a com o peito

e com as mãos fazia o resto.

E ao chegar-lhe à densidade dos cabelos em flor espreitava

os melros e

os pardais apaixonados e

abraçava-a como quem abraça a natureza toda.

Depois esquecia-se de permanecer de olhos abertos e

adormecia na sua sombra até

que

viesse um novo sol.

 

 

A menina de Cabul não pode voar porque lhe amarraram as asas.

A menina de Cabul não pode

voar porque só as bombas voam.

A menina de Cabul não pode

voar porque as guerras não fecham.

A menina de Cabul não pode

voar porque os homens não deixam.

A menina de Cabul não pode

voar porque jaz já morta.

A menina de Cabul.

Não pode.

Não pode.

Não pode.

 

 

Por ser domingo mas só

por ser domingo abri um olho

e voltei logo a fechá-lo

por ser domingo mas só

por ser domingo saí da cama

cara amarrotada

olhos túmidos

passada titubeante

por ser domingo mas só

por ser domingo lavei-me

com água de rosas

vesti uma djellaba

comi torradas quentes

manteiga açúcar canela

e bebi chá de limão

com flor de anis.

Por ser domingo mas só

por ser domingo pus-me

a escrever

com um lápis de bico rombo

por pura preguiça de lhe afiar a voz.

Por ser domingo mas só

por ser domingo até as palavras

dormitam a desoras

e não há quem as acorde.

Por ser domingo mas só

por ser domingo faz-se

o pouco que é possível fazer.

Por ser domingo. Domingo bom.

 

 

Do sol o corpo

da lua os olhos

do mar a voz

da estrela a luz

do ocaso o rubor

da cidade a vida

do fogo o crepitar

da selva a força

do céu o espanto.

Para voarmos juntos

não precisamos de tanto.

 

 

Tinham uma história banal.

Viviam

na grande árvore junto à praia

amavam-se

na velha rede a pender dos galhos

roubavam

maçãs pecaminosas aqui e ali

adormeciam

enlaçados na areia quente com travo a sal

e quando lhes sobrava tempo

passeavam de mãos dadas

sobre as águas aveludadas do rio.

Somente isto.

Não tinham outra história.

Apenas esta. Banal.

Maravilhosamente banal.

 

 

Dedicado a Pedro Tamen (1934-2021)

 

Poema para todos os dias

Os poetas partem mas não partem.

Os poetas partem só de fingir. Partem a meio do poema e

deixam o verso solto. Mas

não se sabe se é mesmo assim

ou se não era suposto partirem. Os poetas pregam partidas

à vida e aos leitores de poesia e

às vezes escondem-se.

Atrás dos sujeitos. Atrás dos eus.

Atrás da vida. Atrás da morte.

Dizem que são poéticos. Que são líricos. E

tudo se lhes perdoa.

Os poetas têm esta capacidade.

Pregam partidas mas ninguém se ofende.

Escondem-se mas todos sabem onde os podem encontrar.

Os poetas são. Os poetas estão. Os poetas ficam-nos no coração.

 

Se para namorar contigo tivesse algum dia

que comer-te a máscara

se para namorar contigo tivesse algum dia

que saborear o não tecido da tua boca

se para namorar contigo tivesse algum dia

que privar-me do sabor do teu palato

se para namorar contigo tivesse algum dia

que saltar todas as cercas da cidade mórbida

se para namorar contigo tivesse algum dia

que adivinhar o brilho morno do teu sorriso

e a curva apertada do teu nariz

não sei se teríamos sobrevivido

ao féretro de um amor minguado.

O amor quando asséptico morre. E mata.